sábado, 28 de março de 2015

Sobre ser invisível ao acordar [ou sobre meu silêncio matinal]

 [Descrição da imagem no fim do texto]

Há quase um mês sem carro para ir ao trabalho, preciso andar duas quadras até o ponto de táxi, o que tem sido um tormento, pela minha necessidade de ser invisível, por duas horas, toda manhã, após acordar.

Tenho me esforçado para estar alimentada, vestida e maquiada em apenas 40 minutos, porque dormir se tornou meu desejo mais profundo depois de 3 anos sem férias. Quem me ama respeita meu silêncio.

Tomo meu café, me dirijo ao portão. Enquanto abro o cadeado sinto que estou sendo observada. Minha vizinha, uma senhora de mais de 80 anos, acorda cedo, imagine, para controlar a movimentação da rua. Ela me espreita. Finjo que não vi, disfarço, olho para cima. Fico irritada ao perceber que o vizinho está, com uma caneca na mão, observando meus movimentos na janela do primeiro andar do prédio da frente.

Sigo rua acima, desejando ardentemente a minha invisibilidade. Mal dobro a esquina: “Patie! Bom dia! Dispensou o motorista hoje, foi? Vai a pé?”. Respiro fundo, dou uma risadinha silenciosa, imaginando como deve ser vazia a vida de quem se ocupa de observar a vida alheia. Não estou num dia bom, estou cansada e com muito sono.

Ainda não tinha me recuperado da surpresa de saber que meu vizinho sabia que eu tinha mudado meu tipo de transporte para ir ao trabalho, quando uma conhecida de minha mãe, que eu nunca vejo, me abordou: “Nossa! Você está gorda, né? Você engordou, foi?”. Ela, que usa uns 5 números a mais que eu, foi beneficiada pelo meu autismo autoinduzido, aquele estado em que eu me vejo, por vontade própria, impedida de interagir com o mundo exterior. Teve sorte de não poder ler o que eu sarcasticamente disse em pensamento: “Sim, estou muito gorda! Quase não posso andar. Quero me desculpar por essa imoralidade. Onde já se viu engordar ao ponto de usar manequim 38? Mas prometo à senhora que vou marcar minha cirurgia bariátrica”.

O relógio marcava 7h30 da manhã. Eu só precisava andar mais uma quadra até o ponto de táxi, mas ainda tive que encontrar outra mulher, dessas esfuziantes: “Bom diaaaa, Cris!!!”. Respondi ao “bom dia” sem nenhum interesse em lembrá-la que Cris é a minha irmã, eu me chamo Patrícia. Estava quase segurando a maçaneta da porta do táxi e escutei: “Ah, é, né? Tem meu cartão e não solicitou nosso serviço”. Eu não sei ser fiel a cabeleireiro e taxista, pelo simples fato de querer ser livre e não ter que esperar ninguém.

“Bom dia, moço. Secretaria da Educação, por favor”. O taxista me oferece o jornal. Agradeci à gentileza, mas ele não me deixou ler, comentando todo o tempo sobre as obras de reparo na cidade que atribui ao Governo do Estado e não deixou claro para mim se estava gostando ou odiando, pois ora reclamava do congestionamento e falta de organização, ora elogiava a beleza das estruturas. Tentei, em vão, explicar a diferença entre Estado e Prefeitura. “Neto não faz nada! Precisou Rui assumir o governo do estado para as obras da Orla começarem de verdade”.

Fiquei calada. Ele se desestimulou e se calou também. Foco no jornal. A leitura não me invisibiliza, mas faz o mundo sumir do meu campo de percepção e isso já me alivia. Cheguei à Secretaria. São 8h10 da manhã. Estou acordada desde as 6h, então já não há motivo para mau humor. Ligo meu computador, começo a receber pessoas. Minha colega da sala ao lado comenta sobre o que mais aprecia em mim: a meiguice. Agradeci com alegria. Alegria, esse sentimento que me acomete depois de 2 horas do despertar. Duas horas, esse tempo precioso do qual meu cérebro necessita para entender que não posso ser invisível e que sou uma pessoa muito meiga e sociável.

Patrícia Braille


Salvador, 27 de março de 2015

Descrição da imagem: Fotografia de uma pessoa, vista da altura do tórax para cima, usando um saco de papel na cabeça. Suas mãos estão em punhos cerrados, unidas frente ao rosto.

Um comentário:

  1. Simplesmente muito bom! Parabéns Patricia, belo texto, emotivo e engraçado (pra mim, é claro), mas com toda essa meiguice, entre o acordar e iniciar o trabalho, acredito que concordará comigo a comédia descrita por ti.
    Parabéns novamente.
    P.S. Irei te observar, em horários que tu estiver visível, é claro.

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